terça-feira, 13 de março de 2012

Abraço

O céu escuro manchado com tons alaranjados anunciava chuva. Seria um lindo fim para aquele dia que parecia eterno. Dia pesado, dia exaustivo. Agonizante. Morreria, enfim,  para que outro nascesse concebido pela chuva. Seria perfeito. A noite abafada aos poucos era amenizada pela suave brisa que tocava um rosto sereno e beijava tristes lábios. O alto do morro era seu lugar preferido. Podia ficar acima de tudo. Sentia-se mais perto do céu.

Ali estava ela. A menina. Em pé, imóvel e absorta em um devaneio sem fim. Seus olhos marejados encaravam fixamente o esboço da lua, quase apagada pela densidão do céu. Seus braços caídos se moldavam junto ao corpo. Nos punhos, a representação de sua angústia diante da possibilidade de chuva. Ela precisava de chuva. Precisava de uma purificação. O vento, cada vez mais forte, balançava os cabelos negros que brincavam nas costas da menina. Seu rosto inexpressivo erguido em direção ao céu revelava toda a inquietação que ela carregava no peito. Fechava os olhos por alguns instantes numa tentativa desesperada de que o vento varresse para longe aqueles pensamentos pungentes. Sentiu uma gota d’água desenhar um caminho em seu rosto. Finalmente a chuva? Antes fosse. Uma lágrima. Sentiu o gosto salgado invadir-lhe os lábios, trazendo de volta sensações que causavam dor. Sensações que há muito não tinha.

Foi então que suas pernas fraquejaram e ela foi ao chão. Caiu de joelhos na grama fresca de orvalho e abaixou o rosto, mantendo o olhar fixo em nada. Imobilizou-se. Depois, arqueou-se. O rosto molhado completava aquele quadro de dor e as lágrimas emolduravam o mais perfeito retrato do pesar. Da dor. Da culpa. Da falta de fé. Do nada em que ela se perdera dentro de si.

O vento parou e seus olhos se inundaram. Impetuosamente, a menina ergueu o rosto em direção ao céu. Um trovão a fez emergir daquele mergulho em si. Um relâmpago trouxe a menina de volta àquele momento. Trouxe-a de volta da viagem que fizera em seus devaneios. O céu estava extraordinariamente escuro. E as esperanças de chuva se esgotavam e se renovavam. E a menina permanecia ali, na espera de uma renovação. Ela precisava tanto sentir a chuva encharcando suas roupas, desenhando o cabelo em seu corpo, purificando sua alma. Precisava da chuva para se sentir viva outra vez.

De repente, uma gota. Mais uma lágrima? Também. Outra gota. E outra gota. E outra gota. Finalmente, a chuva. O céu precipitou toda aquela angústia que carregava. A água gelada fez arrepiar seu corpo quente. Ela abriu os braços e os estendeu para o céu, como numa prece. Como num gesto de agradecimento e libertação. Olhou para o alto e fechou os olhos. Ainda ajoelhada, sentiu a chuva banhar seu corpo. Sentiu a chuva lavar seu rosto outrora embebido em lágrimas. Sentiu a chuva lavar sua alma. E sorriu. Um sorriso doce. Um sorriso de alívio. O sorriso mais sincero já desenhado em seus lábios.

Por um momento, sentiu-se livre. Sentiu seu coração se abrandar. Sentia-se intocável. Inalcançável. Inatingível.

Mas eis que, de repente, seu corpo foi envolto por um abraço delicado. Sentiu na pele fria um toque que ela já conhecia. Abriu os olhos e se viu presa nos braços do abandono.

E a chuva cessou. 

18 comentários:

  1. Lindo (demasiadamente lindo) teu blog... PARABÉNS! :)

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  2. Se tu soubesse a admiração que tenho por suas palavras.

    Adorei!

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  3. Pode parece mentira, mas após um dia corrido, cansativo, exaustante e tão cheio de nada, no seu fim uma chuva apareceu. Meio que daquelas que a gente nunca espera, sabe? Tão forte. Tão para lavar a alma. Subi para minha casa no meio do temporal tão isolado e tão como essa menina do texto. Respirei fundo parágrafo por parágrafo.

    Sensação única, Dani. Obrigado por isso. Muito.

    Aquele abraço (no lugar do abandono).

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  4. Gostei do essencial, parabéns do outro lado do Oceano.

    http://fogodeletras.blogspot.com/

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  5. Lindo esse texto... me lembrou muita coisa boa
    beijos

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  6. E eu sempre espero a chuva, pra sentir que a "poeira" da minha vida abaixe.
    Se não abaixa, pelo menos ameniza. É bom sentir a presença de Deus nela.
    Todavia, aqui ela está demorando pra chegar.

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  7. Quantas vezes me senti no lugar dessa garota, tantas vezes pedi, implorei por uma chuva que me lavasse a alma. E o único vestígio líquido que passava por minha pele, eram lágrimas. E depois, o abraço do abandono me prendia.

    Eu consegui imaginar cada detalhe, consegui ver a garota ali, tentando sobreviver ao mundo, clamando por um alívio. E é tão difícil sair da superficialidade de alguns dizeres, e se aprofundar e viver um texto. Você consegue fazer isso.

    Cuide-se.

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  8. Mas que texto lindo de tão triste...
    Senti toda uma sensação de melancolia e nostalgia ao lê-lo.
    Às vezes é preciso mesmo uma chuva que leve e lave todos os nossos temores, incertezas e dúvidas, mesmo que temporariamente. Traz resquício de esperança e a partir dela podemos pensar em nos reerguer.
    Lindíssimo, seguirei acompanhando essa menina.
    Beijo!

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  9. E que o Sol tarde.
    Belo texto Dani, você é excepcional!

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  10. Essas lágrimas de chuva que acompanham a menina me surpreende. Essa chuva que lava a alma da menina me fascina. Mas o abandono que a menina sente não me agrada. Permita-me trocar de lugar com o abandono menina Dani ? rs' Troco o abraço do abandono pelo abraço do consolo. ;*

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  11. Este comentário foi removido pelo autor.

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  12. São os seus detalhes que mais me surpreendem, Menina Dani.

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  13. Eu sempre enxerguei a chuva como um banho abençoado
    Uma coisa doida de mergulhar e deixar na água os próprios pecados
    Parecido com lavar o rosto de manhã e se ver no espelho
    Quase igual com fechar aquelas feridas que machucam apenas pelo medo

    Sei lá, eu vejo a chuva assim
    A maioria não gosta, mas faz bem pra mim
    Me dá uma certa paz, é quase um afago na alma, sabe?
    Dá vontade de mergulhar no céu, só pra ver onde é que fica o fim

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