domingo, 19 de agosto de 2012

Uma data, dois cafés


O relógio na parede atrás do balcão marcava seis da tarde. Parecia um dia interminável. Ele estava atrasado. O relógio também, conferia ela. “Café das cinco”. Era como um ritual de todas as sextas-feiras. Ela já havia pedido os dois cafés, como de costume. “Um com adoçante e outro com três colheres de açúcar, por favor”. Ela conhecia bem seus gostos, já estava habituada às suas manias.

Lembrou-se de quando tomaram café pela primeira vez, uma casualidade. Desde então, ele nunca havia se atrasado. Mas ela sabia que naquele dia, talvez, ele não aparecesse. O primeiro gole dos dois era sempre simultâneo. Era como um ritual. Conversas, toques, risos. Saudade.

Sete horas e a cadeira à sua frente continuava vazia. Finalmente havia terminado aquela tarde quente de inverno. O barzinho começava a se encher. “Posso ocupar esta cadeira?” – alguém perguntava – “Ela está reservada”. E os cafés esfriavam sob seu olhar angustiado. Um olhar que parecia estar deslocado da linearidade do tempo e fixo em um ponto perdido do passado. Ela havia aberto parênteses no tempo. Vozes, risos, silêncios. Memórias.

Um olhar encontrou-se com o dela naquele vazio temporal. Aquele mesmo olhar. Já fazia um ano. “Há quanto tempo” - a mesma voz rouca. “Pois é”. “Pediu meu café”. “Pedi, como sempre”. “Obrigado. O café está frio” – tocou na xícara. “Saudade”. “Estou atrasado”. Eles haviam se encontrado pela data, mas ninguém tocou no assunto. Ela suspirou enquanto observava aquele andar apressado sumir no meio da multidão. Ele amargou seu café com as lembranças e deixou aqueles parênteses abertos no tempo. Saiu sem preencher o espaço vazio da cadeira. Eram muitos vazios a serem preenchidos, na verdade. Tomou, enfim, um gole de cada xícara. Dois cafés, goles dessincronizados. “Alguns parênteses são mesmo difíceis de serem fechados” – pensou enquanto bebia.

Bastou o primeiro gole para ela perceber que café frio tem gosto de solidão. 

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Agosto


O mês mais angustiante. Agosto havia chegado, ela já sentia. Não precisava consultar o calendário para saber. A noite parecia não ter mais fim naquele dia exaustivo e arrastado. O céu enegrecido não deixava escapar um mínimo ponto de luz sequer. Reinava absoluto em toda sua imensidão. Inundava as estrelas e as encobria com um manto negro. Já não se via limites entre o céu e a terra. 

O vento seco e incessante fazia-lhe fechar os olhos. Ressecava seus lábios. Esvoaçava seus cabelos soltos. Ela não gostava de sentir aquele vento em sua pele porque ele trazia de volta lembranças outrora levadas embora. 

A lua se escondia tímida aos olhos da menina. Lá estava ela, sentada ao pé da mais alta árvore que conhecia. Encostada no tronco escuro e abraçada aos joelhos, era impossível distinguir a menina da noite. Não havia limites que separavam a noite de sua alma. E ela se sentia muito bem assim. Ela se sentia em paz.

Agosto. Ela se lembrava bem desse mês. O que havia lhe acontecido há um ano o tornaria para sempre memorável. Mas ela não gostava de lembrar. Ficava agoniada. Isso lhe tirava a paz conquistada com tanto esforço e depois de muitas lutas. Foi justamente em um agosto perdido no tempo que havia iniciado uma guerra pela paz de seu espírito. Guerra pela paz. Finalmente havia conquistado-a.

E agora estava ali, comemorando sua vitória. Mas estava, ao mesmo tempo, vencida. Toda essa batalha contra si mesma havia esgotado suas forças. Era uma vencedora derrotada. Contradições demais para sua cabeça. Estava exaurida. E aquele vento, que agora soprava gelado e mais intenso, fazia a menina tremer. Arrepiava sua pele. E ela fechava os olhos a cada rajada, abaixava a cabeça e tremia. Queria sair daquele lugar vazio. Precisava de abrigo. Mas, como proteger-se de si mesma? Onde buscaria refúgio daquela luta que travava contra seus próprios pensamentos? Quem a salvaria daquele campo de batalha que era sua alma? Ela vivia em conflito com inimigos que nem sequer podia ver. Eles estavam dentro dela. Ela era seu próprio inimigo.

Ah, menina... Tão ingênua. Pensou que havia, por fim, conquistado sua paz. Estava enganada. Tentou se enganar. Talvez até pudesse esconder seu fracasso em um “tudo bem” aos olhos e ouvidos de outrem, mas jamais poderia escondê-lo de si. De seu espírito.

Agora ela sabia que precisaria enfrentar novamente todos os pensamentos, todos os sentimentos em conflito. E precisava de descanso.

Olhou mais uma vez para aquele céu infinito e suspirou. Num gesto de desânimo, deitou-se na grama úmida. Apoiou a cabeça no braço direito levemente dobrado e repousou o esquerdo junto ao corpo. Fechou os olhos e desejou que aquele vento levasse agosto embora. Adormeceu.

E a densidão da noite envolveu a menina.