sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Uma menina. Uma mala. Um abismo. Uma nuvem.

Olhou para o céu e o viu claro. Nenhuma nuvem para que ela imaginasse desenhos. Havia apenas alguns pássaros que riscavam de preto o azul celeste. Lembrou-se de quando deitava e olhava para o céu e via desenhos bobos formados pelas nuvens. Antes, tinha alguém com quem compartilhar sua imaginação, suas palavras, seus carinhos. Agora... Bem. Agora não havia mais ninguém. Apenas a menina, o céu e uma mala.

Caminhou durante horas naquela estrada no meio do nada, sob o sol daquela tarde quente de verão. Seus pés estavam cansados. Já não se suportava. Além do peso de seu corpo, carregava aquela mala cheia de mágoas, ilusões, planos inacabados e lembranças. Como pesava tudo aquilo. Ela queria se livrar daquela mala cheia de uma vez por todas.

Andava a esmo. Observava tudo ao seu redor. E se perguntava como havia chegado até aquele ponto. Nunca havia se sentido daquele jeito. Pensou em todas as escolhas que fizera até ali. E não aguentou mais segurar a mala. Parou sob a sombra de uma árvore, soltou a mala pesada e se sentou sobre ela. Com o vento soprando forte e quente, se encostou no tronco liso daquela árvore e abriu a mala.

Como num filme em flash back, tirou tudo o que havia na mala e olhou como se fosse a primeira vez que estava vendo seu passado. Quanta coisa havia guardado. Pensou que não deveria ter guardado tantas coisas. O peso da mala a fez tropeçar e cair várias vezes durante o caminho.

A menina percebeu que aquelas recordações estavam molhadas. Lágrimas? Mas o tempo já deveria tê-las secado. Não entendeu. De repente, sentiu que algo molhava seu rosto. Lágrimas? Não. Seus olhos ardiam, estavam secos. Já não conseguia chorar.

Era chuva. Chuva? Sim, chuva! Há dias esperava por isso. Olhou para o céu e viu uma pequena nuvem escura. De onde ela tinha vindo, se até então o céu estava limpo? Não entendeu, mas gostou de sentir os pingos gelados caindo sobre seu rosto e aliviando o calor e o peso que sentia.

Caminhou até a estrada, para fora da proteção que a árvore lhe oferecia. Virou o rosto para cima, com os olhos fechados. Abriu os braços, como se implorasse por uma purificação. E se deixou molhar inteiramente. Ela precisava de um banho de chuva para se sentir revigorada. Sentia, pela primeira vez em dias, que estava viva. Era como se a água que caía do céu estivesse curando o seu coração magoado, preenchendo a sua alma vazia. Pela primeira vez em dias, sentia seu coração leve, livre de toda dor. Queria que chovesse para sempre. Desejava eternizar aquele instante.

De repente, um raio de sol a fez emergir daquele mergulho de euforia e libertação. E ela abriu os olhos. Seu corpo quente se arrepiava ao tocar suas roupas molhadas. A nuvem havia se dissipado depois de despejar toda a água que carregava para a menina. 

Sim. Tudo aquilo tinha sido para ela. Aquele momento era dela. Ela sabia. Só não sabia por que a chuva a fascinava tanto, não sabia por que se sentia tão bem só de olhar a água caindo do céu num ritmo suave e constante. Não sabia de nada. Apenas gostava daquela sensação. A chuva lhe fazia bem.

Lembrou-se da mala e de tudo o que havia tirado dela. Não queria mais olhar todas aquelas coisas que a machucavam, que a faziam sentir aquela dor. A dor do fracasso e da ilusão e do medo e das expectativas e das falhas e da mentira e da espera e da desesperança. Chega. Não suportava mais aquela dor. Estava se sentindo sufocada.

Num gesto misto de raiva e euforia, juntou todas as mágoas, as ilusões, os planos inacabados e as lembranças e enfiou tudo na mala. Reuniu as forças que lhe restavam e a arrastou. Caminhou, desta vez, com certeza de seus passos. Sabia para onde estava indo. De alguma forma, ela sabia.

De repente, parou. Seus pés hesitaram. Seus olhos incrédulos lhe mostraram um abismo imenso. A vertigem a fez vacilar por um instante. E ela se lembrou daquele abismo. Sim. Já estivera ali antes. Da última vez, ela recuou porque alguém havia lhe puxado pela mão. Mas, desta vez, não havia ninguém ali por perto para puxá-la. E ela sabia disso. E isso a amedrontava.

Ergueu a mala e a apertou com todas as forças que ainda guardava. Sentiu as dores antigas subirem por seus dedos e passarem por suas mãos. Já estavam percorrendo seu braço e, antes que chegassem ao seu coração, largou a mala. Fez um passo à frente. E ela caiu.

Um breve silêncio havia se instaurado desde o momento da queda até o impacto sobre as pedras. E houve silêncio novamente.

Finalmente, a menina havia se livrado daquela mala cheia de dores.


E a menina se sentiu mais leve para fazer o seu caminho de volta, independentemente se haveria alguém para imaginar desenhos nas nuvens com ela outra vez.

Neste instante, ela viu outra nuvem se formando.
E choveu de novo sobre a menina.


“A minha alma nem me lembro mais em que esquina se perdeu
ou em que mundo se enfiou.
Mas eu não tenho pressa...
Já não tenho pressa...
Eu não tenho pressa...
Não tenho pressa.”


5 comentários:

  1. Creio que o importante para essa menina seja conseguir uma mala que não a atrase, mas que a ajude a caminhar.

    Muitos abismos e muitas chuvas aparecem ao longo das estradas e, por mais que não haja solução aparente, a saída pode estar em uma mala cheia de experiência.

    Crescer machuca, mas a dor não passa em vão.

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  2. Acabei de ler seu texo e confesso que me emocionei bastante.Porque retratou alguns instantes da minha vida..
    Sei que todos nós passamos por momentos difíceis,e nesses momentos a nossa única saída e tomar uma decição..no caso a da menina foi largar a mala..Desapegar-se das coisas velhas,embaçadas,tempestosas e pavorosas..para que assim as coisas novas e boas podessem entrar em sua vida.

    A certeza de dias melhores consiste em:deixar o medo de lado e acreditar no recomeço.

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  3. Ele partiu seu coração, mas saiba que um dia aparecerá alguém para remontá-lo junto com você peça a peça. A cola? Amor mútuo.

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  4. Parece que tenho uma mala perecida com a dessa menina, tão difícil de carregar que às vezes penso em abandoná-la também... Mas logo desisto da ideia e penso que esta vida é uma viagem, e em todas as viagens, sejam elas boas ou ruins, levamos bagagens, boas... Ou ruins...

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  5. Seria bom se fosse fácil assim.
    Torcendo para que a menina não tenha esquecido alguma lembrança ruim em baixo da cama.
    É sempre na hora de ir dormir que elas costumam assombrar a gente né?

    Beijos linda. Amei o texto.

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